[Série] A roda do tempo

Esta resenha foi feita com base nas edições da Tor Fantasy. 

capawotSinopse:

Um dia houve uma guerra tão definitiva que rompeu o mundo, e no girar da Roda do Tempo o que ficou na memória dos homens virou esteio das lendas. Como a que diz que, quando as forças tenebrosas se reerguerem, o poder de combatê-las renascerá em um único homem, o Dragão, que trará de volta a guerra e, de novo, tudo se fragmentará.

Fonte: Intrínseca

 

 

Li a série The Wheel of Time (A roda do tempo) em 2012-2013, e foi uma das leituras mais épicas da minha vida. Como a Intrínseca está publicando os livros em português, resolvi fazer um post respondendo a uma pergunta que ninguém me fez: eu deveria começar uma série de fantasia de 14 livros, publicada ao longo de 22 anos, com mais de 4 milhões de palavras? E por que faria isso?

O olho do mundo, primeiro livro da série criada por Robert Jordan, nos apresenta o vilarejo de Emmond’s Field, onde vive a maioria dos personagens centrais. Entre eles, Rand al’Thor e seus amigos Mat Cauthon e Perrin Aybara, que são obrigados a fugir quando ocorre um ataque de Trollocs (que são basicamente orcs) e de um Myrddraal (algo que parece um nazgûl). Não se sabe de qual dos três personagens os monstros estão atrás – embora fique óbvio que é de Rand –, mas uma mulher misteriosa, acompanhada por um tipo de guardião, faz os três fugirem com ela. Logo ficamos sabendo que uma força maligna chamada Tenebroso (“Dark One”) está atrás do Dragão Renascido, o indivíduo que tem o poder de salvar ― ou destruir ― o mundo.

Com esse resumo do começo do primeiro livro, que já deixou de fora meia dúzia de personagens centrais, já dá pra perceber algumas coisas. Primeiro, que essa é uma fantasia épica no sentido mais puro da palavra: estamos falando de salvar o mundo de uma força do mal. O foco não é, como em As Crônicas de Gelo e Fogo, um conflito mais “político”. Não que CGF não tenha um lado épico e que RDT não tenha um lado político e humano, mas em CGF sempre há a ideia de que tudo pode mudar se um personagem fizer certa escolha e que o destino daquele mundo não está previamente determinado, mas depende das ações humanas. RDT aproxima-se muito mais de O Senhor dos Anéis, pois tudo caminha para um desfecho previsto e esperado, e do qual depende a existência da própria vida.

Na verdade, a inspiração dessa série em O Senhor dos Anéis é patente, não só nas criaturas como também no cenário ― Jordan inclusive admitiu dar ao primeiro livro um quê de Tolkien, para que o leitor começasse em “território conhecido”. Sinto que muitas pessoas que pegarem RDT hoje vão encontrar clichês do gênero que remontam a Tolkien. E é verdade: Jordan bebe nessa fonte. No entanto, isso não torna sua criação menos genial e admirável. Afinal, muita gente tentou imitar Tolkien – não é coisa fácil. Seu mérito está em se inspirar em elementos consagrados da fantasia épica e criar um mundo com muita coisa original. Além disso, os livros se afastam desse tom Tolkieniano à medida que a série progride.

O segundo ponto é que Rand al’Thor, o “Escolhido”, não poderia caber mais perfeitamente na descrição da jornada do herói. Ele tem um pouco de Jesus e de rei Artur, e é o tipo de protagonista que a fantasia mais contemporânea evita. Mas não acredito que “tropes” sejam necessariamente uma coisa ruim. Pra mencionar um lugar-comum: elas existem porque funcionam. É tudo uma questão de gosto, mas a história de Jordan não funcionaria com um protagonista menos poderoso ou menos destinado a um papel grandioso.

A série é narrada em terceira pessoa, a partir do ponto de vista de personagens diversos. Pra quem acha que As Crônicas de Gelo e Fogo têm muitos PDV: vocês não viram nada. O primeiro livro se foca em Rand por um bom pedaço, mas os outros se expandem consideravelmente, à medida que a trama se ramifica e novos personagens surgem. Na verdade, há livros inteiros em que Rand mal aparece.

A extensão da série e do mundo permite que isso aconteça. Afinal, estamos falando de 14 livros. Apesar desse número, o primeiro volume – e isso me impressionou – tem uma resolução bem satisfatória. Mas isso não acontece em todos. Como em toda série, alguns livros são piores que outros. O livro 9, por exemplo, abre tramas que só são resolvidas no 11, o que significa que o décimo livro se lê como o meio de uma história. Alguns volumes são focados em lugares ou grupos de pessoas que eu não suporto, como os Filhos da Luz, um grupo de fanáticos religiosos que me deixam louca (talvez por Jordan ter retratado tão habilmente seu fanatismo e senso de justiça deturpado). De modo geral, a extensão da série faz com que tudo seja magnificado: Rand passa por uma fase meio deprê (pra usar um eufemismo gigante) que dura alguns livros. Claro que isso tem outro lado: quando chegamos, enfim, à resolução de uma trama, ela é proporcionalmente satisfatória.

O mundo de Jordan é muito bem construído, mas quero mencionar em especial o sistema de magia. É bem interessante, pois se baseia num poder – o tal do Poder Único – que possui um elemento feminino e um masculino. Acontece que, quando os homens usam o lado masculino do Poder, eles enlouquecem. O que faz com que, no início da série, as mulheres sejam as únicas que podem usar magia, e esse simples detalhe muda completamente as relações de gênero no mundo de Jordan. As mulheres (especialmente as Aes Sedai, que são as usuárias de magia) possuem uma autoridade incontestável. É bem legal (ou irritante, dependendo do ponto de vista) ver um mundo em que os homens não tem, por padrão, a vantagem numa briga. E, adequado a isso, as personagens femininas são muitas, muito fortes (e não, não quero dizer só fisicamente) e estão no cerne da história. São rainhas, imperatrizes, Aes Sedai, inventoras, guerreiras, capitãs. Não estão lá para se apaixonar pelos protagonistas – e quando se apaixonam, isso não as reduz ao “interesse romântico”.

O que me leva ao que penso ser o maior ponto positivo da série: os personagens. Ninguém leria 14 livros, por mais bem desenvolvido que fosse o mundo e a trama, se não se importasse com eles. Claro que – quem lê fantasia épica sabe – quanto mais personagens, maiores as chances de você detestar algum. A série tem vários candidatos a menos favorito, e provavelmente você terá que suportar vários capítulos do seu. Na verdade, sei que há pessoas que não suportam o Rand (embora não seja raro os protagonistas não serem particularmente amados – Frodo e Harry que o digam). Isso sem falar daqueles de que você gosta, mas que passam a fazer decisões estúpidas ou ficar teimosos ou condescendentes ou uma série de outras coisas.

Mas é inegável que Jordan cria personagens por quem nos afeiçoamos. E consegue fazer isso mesmo nos livros finais, quando apresenta pessoas novas e em poucos capítulos faz com que nos importemos com seu destino. Além disso, a vantagem de uma série dessa extensão é que a evolução dos personagens é tão épica quanto a história maior. Acompanhamos sua jornada por tanto tempo que, quando atingem seu momento de glória, é emocionante. Isso para não falar dos antagonistas, que possuem muitos capítulos e personalidades complexas que os tornam fascinantes.

Outro ponto questionável do livro são seus romances. Esqueça o triângulo amoroso: a série tem no centro um quadrilátero amoroso (ou talvez pentágono?). Se, por um lado, ele é resolvido de um jeito que eu nunca vi em qualquer outra série, por outro, o dramalhão mexicano às vezes é meio exagerado. Além disso, talvez porque eu leia tantos livros LGBT, sempre acho inverossímil quando o mundo é populado só por gente hetero (há alguns personagens não hetero ao longo da série, mas não espere muita representatividade).

Por fim, outra vantagem da série é já estar toda acabada. Se você lê em inglês, pode fazer uma maratona, como eu, e imergir nesse mundo de cabeça; se não, parece que a Intrínseca vai publicar os livros com regularidade. (E com capas bonitas, o que me deixou meio triste, já que me afeiçoei aos desastres que eram as medonhas capas originais.)

No entanto, vale notar que Robert Jordan faleceu em 2007. Os últimos 3 livros foram escritos por Brandon Sanderson, e muitos fãs da série reclamaram do seu estilo. Sem dúvida, logo depois de ler tantos escritos por Jordan, quem pega o primeiro de Sanderson nota imediatamente a diferença, mas eu pessoalmente gostei bastante dos últimos livros, depois que me acostumei com a mudança. E os últimos capítulos da série foram deixados pelo próprio Jordan.

Outra vantagem é que é extremamente improvável que uma adaptação para o cinema seja feita – não só pela extensão da série, mas também porque grande parte dos desenlaces se passam na mente dos personagens, o que seria muito difícil retratar. Não impossível, mas não acho que vá acontecer. Então respire aliviado: ninguém vai estragar os livros pra você!

Em conclusão: é uma série com altos e baixos narrativos, mas ambientada num mundo épico muito bem construído, com personagens verossímeis e conflitos profundos e reais, que envolve o leitor completamente no seu universo. Não me arrependo nem um pouco de ter passado tanto tempo nele, e adoraria retornar.

*

Em português

O olho do mundo
Autor: Robert Jordan
Tradutor: Fábio Fernandes
Editora: Intrínseca
Ano de publicação: 1990
Ano desta edição: 2013
800 páginas

Também em português: A grande caçada (2014), O dragão renascido (2014), A ascensão da sombra (2015)

Em inglês

Por Robert Jordan: The Eye of the World (1990), The Great Hunt (1990), The Dragon Reborn (1991), The Shadow Rising (1992), The Fires of Heaven (1993), Lord of Chaos (1994), A Crown of Swords (1996), The Path of Daggers (1998), Winter’s Heart (2000), Crossroads of Twilight (2003), Knife of Dreams (2005)

Por Robert Jordan e Brandon Sanderson: The Gathering Storm (2009), Towers of Midnight (2010), A Memory of Light (2013)

16 respostas em “[Série] A roda do tempo

  1. Ahá! Aposto que, na verdade, você só postou esse livro porque eu contei que o Bhering escolheu esse e eu fiquei tentada, mas com preguiça (shame on me!), hehehe.

    Bom, sua resenha é ótima: parabéns e obrigada! É uma pena que seria impossível começar alguma coisa tão grande agora, eu esqueceria os personagens e a história no meio do caminho… Vou fazer o Bhering comprar a série toda e depois pego tudo dele. =P

    Pra encerrar o comentário, tenho uma sugestão pra você e pra Babi: e se, em vez de apenas resenhas, vocês colocarem alguns pequenos tópicos de “teoria” também? Essa sua resenha foi mais ou menos assim (eu não sabia o que eram tropes!) e eu achei muito enriquecedor. Sei lá, de repente fazer as coisas misturadas mesmo; aí vocês não só estariam ajudando a formar a biblioteca dos leitores, como os próprios leitores.

    Mil beijos!

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